Não era de se
estranhar que João Roberto viesse a comprar um cofre, com intuito de guardar o
seu salário e outras coisinhas de valor. Quando a mulher lhe perguntou a razão
daquilo, olhou para ela com certo desdém, como se fosse tão óbvio que não
precisasse de resposta alguma. Botaria o pequeno objeto por sobre a estante do
quarto, detrás da televisão, no compartimento que havia entre os dois armários
embutidos onde Lola e João tinham suas roupas, sapatos, etc.
Como uma criança
que ganha um brinquedo novo, João tira a caixinha de metal da embalagem e lê as
instruções. Pela primeira vez, fecha o seu cofre, com certo entusiasmo,
pensando que somente ele poderá dedilhar ali aquela senha, que não é tão óbvia
a ponto de alguém desvendá-la, nem tão insana a ponto de ele mesmo esquecê-la.
João ainda fica um tempinho contemplando seu próprio segredo. Depois finalmente
o afunda por detrás da TV.
Talvez seja
importante dizer que João Roberto não confiava em bancos. Sim, ele tinha uma
conta bancária, necessária para receber seu salário, mas logo no dia em que a
grana entrava ele já retirava o que podia de lá para guardar as notas consigo
em casa, afinal, não queria se ferrar como o pai, que havia perdido toda a
fortuna da família. Na época, o pai vendeu a estância, botou o dinheiro no
banco, mas um dia o dinheiro desapareceu. A família acabou passando meses de
penúria, o pai não tomava mais o seu uísque predileto depois das refeições e
começou a tomar muita cachaça em vez de comer coisa alguma e o resto da família
só comia diariamente arroz puro com no máximo sal e ervas que cresciam como
inços ao redor da casinha em que o pobre pai um dia acordara pendurado pelo
pescoço diante de uma família aos prantos. Por conta dessas memórias é que João
ganhava o salário e tirava do banco o mais rápido possível. Comprara um cofre,
para enfim parar de esconder o dinheiro pela casa como um moleque, afinal, já
estava fazendo trinta anos, e estava ganhando um bom aumento. João não
acreditava em valores imaginários, mas sim no cheiro do dinheiro. Somente ele
sabia da senha. A esposa fez uma cara, disse que não achava aquilo necessário.
A filhinha não gostou do cofre, disse que era feio, muito feio.
Como contador, sob
o inevitável vício da contabilidade, João logo supôs que seus valores guardados
preenchiam cerca de três por cento do espaço disponível. Pensando inocentemente
que não havia razão para que não o fizesse, João pegou uns eletrônicos e uns
álbuns de fotos antigas e depositou em seu cofre, sentindo que assim lhe dava
mais utilidade. Afinal, se havia um cofre ali, praticamente vazio, por que
então não botar mais coisas dentro dele?
João abriu os
olhos e antes mesmo de ir ao banheiro arredou a TV para dar uma olhadinha.
Achou que parecia um pouquinho maior. Lavou a cara, se vestiu, arredou a TV
novamente, teve a mesma impressão. Olhou em volta, a esposa estava na cozinha;
então, João aplicou ali sua senha, e deparou-se com aquele vazio. Foi tomar o
café da manhã, pensando numa coisa inusitada, na qual nunca havia pensado.
Disse à esposa, “Já pensou nesse nome? Café da manhã... É obrigatório que tenha
café, no café da manhã?”. A esposa riu, não falou nada e encheu sua xícara com
o café mais famoso do país, como se aquilo fosse uma resposta, ou um cala-boca.
À noite, João
achou prudente guardar no cofre as joias da mulher. Quando ela viu, já estavam
lá. Daí ela não gostou. Disse para o João não fazer mais isso, mas, depois de
uma leve discussão, aceitou que suas joias dormissem no cofre. Quis saber qual
era a senha. João disse que somente ele precisava saber.
No dia seguinte, a
mulher pediu uma joia, queria usar o colar banhado a ouro. João perguntou por
que ela queria usar aquele colar durante um dia de semana. Lola fechou a cara e
foi fazer qualquer coisa que evitasse um conflito. João olhou para o cofre, que
estava enorme. Parecia que empurrava a TV. Balançou a cabeça e aprumou-se para
mais um dia de trabalho.
Chegando em casa,
João entrou no quarto e teve certeza de que estava acontecendo algo estranho quando
aplicou sua senha e teve de fato a sensação de que havia preenchido três por
cento do cofre, no máximo, como se aquele espaço insólito mantivesse em si uma
espécie de verossimilhança interna, sem se modificar ante as impressões de
João. Não tinha nada lá dentro, quase nada, ele pensava. A mulher passou e viu
João meio curvado, olhando catatônico para o interior do cofre, e teve um
arrepio.
Lola já estava
deitada, quando João se deitou, e tentou se acalmar. Tudo no quarto se
inquietava com a sua tensão. Estava ganhando mais, talvez chegasse a receber muito
melhor, em outra empresa, outro futuro. Mas as pálpebras não queriam ficar
fechadas, estava sendo um esforço mantê-las assim. Abriu os olhos, como se
relaxasse. Sentou-se na cama. Lola já ficou apreensiva. João Roberto ficou
encarando a TV, consciente da inflação que havia por detrás dela.
Inevitavelmente, fez o que Lola temia: levantou-se, no meio da noite. Foi até a
sala, no escuro, pegou o que julgava ter maior valor e guardou sob seu segredo,
sentindo-se um pouco melhor. Tomou um remedinho, deitou-se, e uma hora
conseguiu apagar. Mas Lola não dormira a noite inteira.
A cada dia, João
Roberto botava mais coisas dentro daquele cofre, e mais ele parecia vazio por
dentro – falo tanto do cofre quanto de João. Tendo certeza de que o troço
crescia despudoradamente, pois já estava bem maior do que a TV, João botou a
televisão dentro do cofre, e quando fez isso ainda disse à esposa, “Bom, pelo
menos, agora vamos perder menos tempo com essa porqueira”.
Mas aquilo
começava a empurrar os armários, que estalavam a ponto de quebrar-se, enquanto
João ia socando coisas da casa dentro de seu espaço oculto, como se fosse só
por obviedade. Lola disse que deviam tirar as suas joias de lá, a TV, as
roupas, disse que deviam esvaziar totalmente aquele buraco negro, isso sim. Mas
João não estava nem aí. O que deviam fazer, ele pensava, era tirar o cofre de
cima da estante, antes que ele crescesse mais e despencasse de lá. Assim, deu
um jeito de botar a grande caixa de metal no chão, com cuidado. João já
conseguia pôr a cabeça, o braço, todo o tronco, lá dentro.
João percebeu que
sua cama não cabia mais ali. Em breve, não poderia abrir a porta do cofre, por
causa da cama. Foi quando teve a ideia de botar a cama dentro do cofre, sim,
vou fazer isso, ele pensou. Foi quando, pela primeira vez, João entrou lá de
corpo inteiro. Como é amplo, pensa João, quase de pé. A mulher não diz nada,
mas seu olhar grita que aquilo não é nada bom.
Percebendo que era
a única solução, o casal admitia que todas as coisas que estavam dentro dos
armários quebrados fluíssem para seu inevitável destino. Antes de dormir, João
tinha o cuidado de encostar a porta, sem fechá-la, e, ao saírem, a fechava com
a senha que só ele conhecia. E não só os armários já estavam demolidos, mas
também todas as paredes do quarto rachavam ruidosamente. O quarto da filha
começou a ficar com o piso todo quebrado e as paredes cediam, quando João teve
certeza de que a melhor solução era trazer a cama da filhinha para dentro daquele
espaço seguro. A criança nem chorava mais. E era já necessário que tudo que
havia em casa tivesse o mesmo rumo, por única solução, para que seguissem
tentando ter uma vida relativamente estruturada, mantendo sempre o suspiro de,
um dia, ganhar na loteria, ou alguma coisa assim.
As paredes azuis
todas se quebravam e as telhas laranjas já despencavam de lá quando o cofre
finalmente transcendeu à casa, destruindo tudo, ficando maior que ela, muito
maior – e agora só o que havia era uma caixa; nem piso, nem teto, nem janela,
mas sim uma enorme caixa metálica, rodeadas de entulhos.
Numa noite
estrelada, João dedilhou sua senha, e lá entraram. Acenderam as velas, pois luz
elétrica não tinha mais havia dias. Enquanto a filha ia para o seu canto, a fim
de estudar sua estagnação, a mulher ia passar um café e fatiar uns pães do dia
anterior para torrar na panela de ferro. João havia comprado umas fantasias de
carnaval, um banco dobrável, uma caixinha de música e mais umas coisinhas, mas
não comprara alimentos. Quando ele trazia coisas desnecessárias para dentro de
casa, Lola já nem o questionava mais, só que naquela noite ela perguntou, “Pra
quê isso?”. E João não olhou para ela com aquele tom de obviedade de sempre.
Ele descansou os olhos lentamente, como se suas pálpebras fossem as cortinas de
um teatro que acaba, e respondeu com um ronco no estômago, diante de uma mesa magra.
Jantou pensando
demais sobre a vida, meio aéreo, sua mulher falava com ele e ele respondia de
modo vago, quando respondia. Como que por descuido, antes de dormir, bateu a
porta do cofre, esquecendo-se de que cofres não têm abertura por dentro.
João se arrepende,
mas já não dá mais. As velas se apagam. Nem tudo está perdido, talvez o Dilmar,
meu irmão, ou meu colega, o Celso, ou então o meu sobrinho, talvez alguém
apareça por acaso e descubra a minha senha, talvez alguém deduza o meu segredo,
pensava João, pendulando em silêncio, percebendo que aquilo que ele mais temia
antes era exatamente o que agora lhe dava um pingo de esperança, uma esperança
rançosa, quase sem oxigênio, mesmo assim, esperança. Mas logo João estava feito
estátua, frio e desalmado, enquanto a mulher e a filha choravam desamparadas
naquela escuridão.
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