sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Em Paz

A gente tinha ido a um sushi. Ele gostava de sushi. Joguei-me no sofá do quarto e fiquei ali um tempo, vestida, de sapatos, digerindo o jantar e tudo mais. Eu não entendia por que todo mundo parecia estar me tratando diferente, eu não entendia. Senti frio, mas fiquei ali, sentada. Eu via ele tirando suas botas, removendo rapidamente tudo que estava em cima da cama, o laptop, as folhas rabiscadas, roupas e livros; era o que via meu marido fazer: deitar-se de qualquer jeito e desligar o abajur. Fiquei olhando pra cama escura. Fechava os olhos, abria os olhos, nada mudava, então. Eu não o enxergava, não o ouvia se mexer, roncar, nem mesmo respirar. Eu tinha mesmo medo de estar ficando louca. Sentia-me estranha, achava que ele estava muito estranho, pra mim era só isso. Num piscar, nada mais vinha dele, mas eu o queria perto, mais perto. Comecei a sentir uma falta, um rombo dentro de mim, parecia que ele não estava ali, mas ele não tinha se levantado, eu teria escutado; não se levantou nem nada, eu pensava. Acho que cheguei a falar com ele, ou me imaginei falando; ninguém respondeu. Uma angústia, comecei a devanear seriamente que, se acendesse a luz, ele poderia não estar ali, mesmo que eu o tivesse visto deitar-se na minha, na nossa cama. Temia que ele estivesse com a cabeça em outra, tinha medo de estar sendo traída, mas, também, queria que fosse só isso, mesmo; creio que a gente teria dado um jeito. Achei que tinha visto um vulto. Queria abrir a cortina da janela, deixar entrar a luz da lua, enxergar sua silhueta. Queria acender a lâmpada, mas poderia acordá-lo, se é que estava ali dormindo. Queria deitar e tocá-lo, mas sentia pavor de ir tateando a cama, que parecia vazia; temia encontrá-lo, temia não encontrá-lo. Tudo que eu queria fazer me aterrorizava. Queria falar com ele, dizer que estava meio mal, mas, se questionada, talvez nada saberia dizer; e tinha mais medo ainda de que ele nem me perguntasse nada. Havia meses que eu ficava só assim: sentindo aquela presença, de boca praticamente fechada, tomando remédios.
Fiquei com sede, pensei em ir até a cozinha. A casa era grande e velha. Sempre tive medo de atravessar o corredor, mesmo quando a casa estava cheia. Eu queria crianças correndo, chamando-me de “mãe”, “dinda”, “vó”. Antigamente, nós chegávamos dos jantares falando das pessoas com as quais tínhamos nos relacionado, tomávamos mais vinho, na mesma taça; transávamos. Mas, naquela noite fria, nem palavras, nem taça, nem toque, nem mesmo preparar-se pra dormir direito. Pensei ter ouvido claramente um barulho seco na cozinha, um barulho de copo vazio posto na pia. Arrepiei-me. Pensei que eu devia ter cochilado ali no sofá do quarto, só podia. Eu sempre ouvia aquele som no meio da noite. Ele sempre acordava pra ir beber um copo d’água, eu sempre dizia pra ele dormir com um copo do lado da cama, quando ele voltava; ele dizia que gostava de água gelada. Até pensei em comprar um frigobar. Fiquei ali no sofá esperando ele voltar, mas ele não voltara, mesmo. Levantei no escuro e fui tateando as paredes, percorrendo o corredor, até chegar na sala que havia entre o quarto e a cozinha, onde acendi um abajur. Olhei diretamente pro quadro que eu mesma havia pintado, em boas épocas. Era um cavalo negro selvagem, sem rédeas, galopando em meio a um mar de poeira avermelhada. Olhei pro lavabo; vi que a escuridão do lavabo não me cortava, como o escuro do quarto. Ele nunca usava o lavabo. Não estava no lavabo, nem na cozinha, nem ele, nem ninguém. Achava que ele devia estar lá no quarto, mesmo; só podia estar lá, eu pensava. Mas não fui pro quarto.
Lembrei das minhas amigas me falando um monte de coisa, gritei “Alex!”, ninguém respondeu. Era a última vez que eu chamava por esse nome. Estava com sono, queria voltar pra cama pra um sono pesado. Pensei em tomar uma pílula pra dormir, ou várias delas pra acabar com tudo de vez; mas não.

Tomei mais água, olhei o relógio. Num impulso que na hora me pareceu insano, peguei minha bolsa e fui pra casa da Elisa, onde as gurias disseram que estariam. Deixei-o descansar, em paz.

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